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sábado, 26 de abril de 2014

O menino prodígio

        Quando tinha doze anos, Abelardo Bauer (ou simplesmente Abel, como seus colegas da oitava série do "Centro Educacional Pereira Cardoso" costumavam o chamar) escreveu um pequeno conto de ficção científica e o entregou nas mãos de sua professora de literatura, chamada Lídia Rockembach. Foi um gesto simples e rápido. Quando ela viu, já estava recebendo o manuscrito das mãos do menino. Ao recebê-lo, Lídia, com três décadas de experiência pedagógica, o enfiara dentro de sua pasta Satchel esperando que fosse mais um amontoado de palavras sem sentido que a maioria de seus alunos a entregavam. A verdade era que ela já estava em pó de rabiola por causa disso.
            Lídia era uma gorda pançuda de cinquenta e dois anos que levava a escrita muito a sério. A mulher era uma ratazana de biblioteca! Ela odiava as obras tramadas em poucos minutos em mãos inábeis, não perdoando nem mesmo os guris. Tudo que é bom, pensava ela, só era bom porque fora feito com muita calma, prazer e esforço. Não existia talento sem empenho. Também não existiam contos escritos desleixadamente que fossem relativamente bons... O tempo o transformava, o tempo o florescia, e produzir de qualquer jeito, com o ingênuo objetivo de querer saber a opinião alheia acerca daquilo que escrevera, era uma forma errônea de ganhar popularidade. Os leitores bem que mereciam um respeito maior neste quesito.
            Para ela, o bom escritor é aquele que escreve para agradar a si mesmo.
       - Está certo - Lídia disse. Ela permanecia sentada atrás de sua grande mesa de fórmica, em frente ao quadro negro, mesmo depois de todos os alunos já terem se retirado da sala, exceto Abel. - Prometo dar uma olhada quando chegar em casa. O que não prometo é que eu vou gostar.
            - Obrigado professora.
          - Tudo bem - Lídia levantou-se finalmente. - Agora realmente precisamos ir embora Abel, senão é bem capaz do zelador nos prender aqui por engano. O homem quanto mais velho fica, mais lesado se torna. Você concorda comigo?    
            - Concordo sim, pode crer!
            Então Lídia abriu um largo sorriso e espalhou o vasto cabelo cor de palha do moleque para o lado, que, embaraçado, sorriu também. Desligaram-se as luzes, deixando as paredes azuis turquesa sombrias. Ambos saíram da classe, depois da escola, tomando caminhos opostos naquele fim de tarde que prometia uma sonora tempestade.
            Só que Lídia não sabia da missa nem a metade: aquele menino que estava ao lado dela, que dificilmente andava ao lado de um amigo ou de mãos dadas com uma namorada, que falava muito pouco e não saía tanto de casa, era quase um gênio...
     
          
           ***

           Ela não descobriu isso de um dia para o outro. Demorou mais de duas semanas para que Lídia se lembrasse do amontoado de papéis (todos quase amarfanhados feito uma bola de tênis) jogados no interior de sua pasta de Satchel. Mesmo assim, Abel nunca chegara perto dela para lembrá-la da promessa que ela fizera para ele "O nosso maior crítico é a nossa mente", a sua mãe, vencedora de vários prêmios literários como cronista, sempre lhe dizia isso, "Então meu filho, confie em seu próprio ego e bola pra frente".
         No entanto, não foi por falta de vontade que Lídia deixou a estória de Abel de lado. Dar aulas, corrigir provas e jogar boliche ou bingo clandestino nos finais de semana com os amigos eram as suas principais prioridades. Poder-se-ia dizer que eram as suas ÚNICAS prioridades, de modo que sua filha, já crescida, sempre viajava para fora do país como comissária da Tam; e o marido, Gustavo Farias de Rockembach, que morrera em um acidente de carro na Avenida Brasil, já descansava há mais de dois anos debaixo da terra no Cemitério Municipal da cidade.
      - Isso daqui é uma joia rara! - foi o que Lídia disse ao ler o manuscrito de onze páginas.
        Ela lera em casa na companhia de um copo de sidra laranja. O último conto que lhe havia deixado tão deslumbrada daquele jeito, fora um escrito por H.P. Lovecraft chamado "Entre as Paredes de Eryx". Apesar de antigo, o conto de Lovecraft era moderníssimo para a época, cuja trama se passava no planeta Vênus onde o personagem central viajava até lá a procura de cristais de energia, mas acabava sendo preso em uma espécie de labirinto invisível no meio de um pântano desértico, porém, cheio de homens-lagartos do lado de fora querendo pegá-lo, mas sem sucesso, pois havia a impercebível parede entre eles. É lógico que Eryx era superior a de Abel... mas, um garoto de 12 anos escrever algo como ela acabara de ler, era realmente de se espantar... Ele não enchia linguiça desnecessariamente. Ele ia direto ao ponto. Até então, muitos trabalhos literários passavam pela retina de Lídia Rockembach, cuja maioria deles eram bem ruins. Aquele ali em suas mãos era divino.
        O conto de Abelardo se chamava O Homem-Lagarto.
        Era uma espécie de registro feito sobre um dos seres mutantes extraído da estória de Lovecraft (como a vida de um Hobbit extraído da saga do Senhor dos Anéis, por exemplo). Obviamente, o conto continha alguns erros ortográficos e falhas de concordância – normal e justificante aceitável para uma criança daquela idade. Além disso, a caligrafia dele era terrível. Contudo, o enredo e a trama, assim como a vasta imaginação que fluía na mente de Abel, era algo surreal.
             Lídia estava ansiosa para conversar a sós com ele.
             Logo teve essa oportunidade.
           Aconteceu na hora da saída, quando todos os alunos se dispersavam pelo extrínseco portão do colégio. Lídia, que não tinha ido trabalhar naquela sexta-feira, parou o seu Ford Windstar azul na porta de entrada, esperando-o, secando-o.
           - Olá Abel - ela o viu passar com a correia da mochila trançada no ombro direito. - Quer uma carona? Entra aqui, vamos.
         Abel ajeitou seus óculos de grau quadrado no rosto, remendado com grossas fitas adesivas.
             - Professora Rochembach?
           - Não, o meu nome é Cleópatra e estou pronta para me suicidar. Venha até aqui Sr. Love brasileiro! O que eu tenho para te contar é algo importante, acho que você vai gostar.
             Abel entrou no carro mesmo achando que a sua professora estivesse mais louca do que uma enfermeira de asilo.
             - Pensei que a senhora não...
           - Eu realmente não vim trabalhar hoje, se é o que você pensou. Só não me contive em esperar até segunda para te ver. Quer biscoito? Tem uma embalagem de Oreo e uma garrafa de Gatorade no porta-luvas. Ainda está gelada. Pode pegar.
             - Acabei de lanchar, mas aceito o Gatorade.           
           - Não seja tímido - Lídia disse, fechando as janelas do carro para que pudesse ligar o ar condicionado, acionando a trava elétrica. O clima lá fora era de mais de 35° graus com tendências de estender-se nos próximos dias.
             Antes de deixá-lo em casa (ela ainda não sabia onde ele morava, pois começava a se interessar pela vida dele justamente agora) Lídia o levara até a perimetral que dava vista para a Praia do Forno, em Arraial do Cabo, parando seu Ford em uma das vagas de concreto que custava R$20 a hora. Um disparate!
             Mesmo assim, ela pagaria ao homem sem muito pleitear.
           Mais além, através de uma cerca de madeira com o desenho de um enorme Tucano de bico amarelado separando o calçadão da areia da praia, um ou outro surfista tentava pegar onda no mar lá ao longe.
             - O que a senhora tem para me contar? - Abel estava louco para ir embora, abrir o Word e escrever novas estórias. A maioria dos garotos de sua idade ficavam mais preocupados em chegar em casa e assistir a MTV ou a MULTISHOW.
             - Eu li o que você escreveu - Lídia revelou, fleumática.
             - A senhora gostou?
             - Não - foi uma resposta tão rápida que acabara saindo antes mesmo do final da pergunta.
             - Se não gostou então devo pedir desculpas por fazê-la perder todo o seu tempo! Eu nem mesmo sei por que a senhora me trouxe até esse lugar, já que não...
           - Meu filho, gostar não é a palavra ideal para descrever o que senti ao ler o seu conto. Acho... acho que fiquei deslumbrada.
             - Tá falando sério?
          - Não é Tá. É Está. E sim, estou falando muiiiito sério. Tem a minha palavra de honra!
            - Embora eu tenha me superestimado. Conclui assim mesmo, e lhe entreguei, este é o manuscrito. Pode me devolver?
             - Sim! É o inicio de uma obra, pode ser que com a maturidade você o desenvolva mais. Por que nunca disseste antes que escrevia?
             - Ás vezes ficamos quietos com medo de falar bobagem.
             - O que disse agora é uma grande bobagem, o medo inibe as pessoas pelo mundo todo Abel. O que pretende ser após o colégio?
             - Não serei um escritor. – Disse categoricamente.
          Com expressão de raiva e deliberadamente inconformada Lídia subiu as sobrancelhas e disse:
             - Quando eu tinha sua idade, eu disse o mesmo para meu professor, mas não era um professor normal, era meu pai, ele sonhava que eu pudesse compartilhar com o resto do mundo meus pensamentos e meus contos. Um dia no sul de Minas Gerais, fui até a biblioteca pública, e adentrei com meu pai por severa curiosidade, lá tinha um grande piano, prateleiras com milhares de livros, algumas esculturas em madeira de artistas da cidade de Passa Quatro, e quando olhei nas paredes, tinha fotos de pessoas e coisas.
             - Mas onde quer chegar - Interpelou Abel ansioso.
      - Estive neste lugar, foi quando meu professor, meu pai, fez o mesmo questionamento. Eu frequentei a escola normalmente, mas meu pai era meu professor de vida querido, me mostrou que nem sempre estar no pódio faz de você o melhor. Ele coexistiu em minha vida de forma tão arbitrária que pude ter um certo êxtase de remorso quando ele se foi.
             - Por que não escreveu um livro?
             - Escrevi, escrevi muitos, mas os queimei depois que ele se foi.
             - E qual a relação da biblioteca, livros e seu pai?
             - A relação é simples. Você percebe a cada momento que passa que sua parcela de existência aqui é mínima, e eu deixei de aproveitar o prazer de participar quem sabe um dia das paredes daquele belo lugar com meu rosto, com minhas obras no salão e com a estupenda memória de meu pai. Eu seria uma grande escritora na minha cidade, mesmo que somente para ele.
             - Embora, eu a respeite e a memória de teu pai, não posso fazê-lo somente por uma frustração da senhora. Espero que não entenda mal, não estou sendo grosseiro.
             - Não, não está. – Disse olhando para o horizonte, seus olhos tinham um brilho vago e pensou novamente no conto de Abel.
             - E o que quer ser? – Questionou Lídia.
             - Um entusiasta.
             - Mas disse que não seria escritor.
             - E não serei, serei um entusiasta. Quero observar as coisas, pessoas e condutas que o mundo segue, ou quem sabe caminhos, seja lá como for que é o certo dizer.
             - Caminhos. – Disse Lídia rapidamente.
             - Não é? O mundo de escritores e as pessoas adultas sempre estão aptas para corrigir a todos.
             - Não foi uma repreensão.
             - Não, não foi. Mas é por esse tipo de pensamento que não quero ser um escritor, não quero ser perfeito, ser um cara grandalhão que fala e não aceita que os demais discordem, ou mesmo que tem a obrigação de ser perfeito consigo mesmo para que não se julgue quando receber alguma critica de seu próprio trabalho.
             Por um certo momento um silêncio glacial pairou entre eles, e como um golpe vieram verdades aos dois. E se questionaram fitando o horizonte por cerca de dez minutos, calados, e admirando a cor azul belíssima do céu carioca.
             - Lídia! Não temos um prazo para fazer qualquer coisa que seja em nossas vidas. A velhice não é desculpa. Se quiser ainda reatar parte de seu fabuloso passado, deveria publicar seus livros.
             - Eu os queimei. – A professora disse com indiferença.
             - Não, não os queimou, deve ter alguma copia.
             - Como pode duvidar de mim? Sou uma professora velha e verdadeira.
          - Eu digo sempre para os outros que queimo minhas obras também, por ter vergonha delas, e quanto a isso acredito que sejamos comparsas.
             - Como sabes?
             - Apesar de eu ser um menino, um jovem entusiasta tende a ser abençoado com o dom da adivinhação. – Sorriu gentilmente para a professora.
             - Não serei uma escritora, e quem sabe uma entusiasta também?!
             - Não você não pode mais ser uma entusiasta.
             - E tem idade?
         - Não, não tem, mas é uma escritora, nesses dias após lhe entregar o Homem lagarto, eu pesquisei seu nome na internet, e na página 10 ou 13, não me vem agora, tinha um pseudônimo e que era similar ao seu nome, um anagrama de letras, e li no site, que era de escritores alguns de seus contos. É tão famosa e lida. Que jamais seria uma mera entusiasta, é uma escritora.
             Por certo momento Lídia, olhou para sua esquerda desprezando a presença do rapaz e seus olhos em lágrimas disse serenamente:
             - Até hoje ninguém da escola havia buscado referências minhas, quiçá descobrir que sou uma escritora por trás de um pseudônimo. Minha presença austera inibe as pessoas, e sempre fui taxada como a professora chata.
             - Estou feliz que tenha se aberto.
             - Obrigado! – Agradeceu Lídia.
             - Pelo que? – Abel disse curioso.
            - Por mostrar que a vida não é apenas as linhas que o mundo ou as pessoas traçam, estamos além disto. Eu tenho a agradecer a você por me relembrar disso.
             Abel assentiu com a cabeça. E o carro tomou rumo pela via, após deixar o rapaz próximo de sua casa, ela foi para sua descansar.
            Cerca de dez anos se passaram depois daquele encontro, o sol estava escaldante e o céu era azul como o do encontro, mas infelizmente era uma data não muito feliz. Lídia falecera pela manhã. Abel já mais velho resolveu deixar uma singeleza homenagem na sepultura da ex-professora dias depois.
             Ajoelhou próximo a lápide, cujo estava a bela foto de Lídia quando jovem, e acho que o homem que estava cortado, era seu pai. Ele levou flores, mas não flores comuns, eram poemas e contos de Lídia dobrados em um ramalhete bege belíssimo. Ele os colocou desnudos, com uma frase. “Foi professora, escritora, amiga e rara entusiasta entre os homens”.
             A professora sem saber, após aquela tarde com o garoto, ela acendeu a chama dos sonhos, um pavio que estava molhado a um certo tempo por repreensões ou dilemas que eles mesmos criaram, anos após, tornou-se um escritor, do qual jamais disse que seria. E entendeu que os entusiastas fazem algo por nós sem que lhe paguem ou de algo em troca, e em seu peito entendeu o porque de Lídia ser uma fabulosa entusiasta.
             No ano atual, ele viajou por cerca de quinze estados para divulgação do seu romance Homem lagarto, e na penúltima parada foi a cidade de Passa Quatro, a qual Lídia viveu e morou. Seu livro seria apresentado na Biblioteca Municipal, e ao chegar notou que o rosto da professora não estava entre os demais, gesticulou com certo pesar e continuou a sorrir.
             O frio era intermitente no sul de Minas, chegou em julho e aproveitou para passear entre as singelas lojas e belos parques de fontes naturais da cidadezinha. Entendeu o porque ali fazia tão bem para sua amiga. Aproveitou também da culinária e passeou na Maria fumaça. Esteve por alguns dias em paz. E de certa forma decepcionado pela indiferença das pessoas e da prefeitura com sua escritora favorita.
             Horas antes de partir, resolveu por uma última vez, descansar e ouvir os pássaros cantar em uma praça belíssima próxima a rádio da cidade, e sentou-se, com um livro e um copo de suco passou por alguns momentos, sem esperar, olhou ao longe e viu que no fim da praça tinha um rosto deveras familiar. Aproximou-se e era de Lídia, um belo busto em bronze, jazia naquela praça. Ficou atônito e releu varias vezes a inscrição embaixo do busto. “Sou uma entusiasta, os escritores são apenas pessoas que entregam palavras, eu vivi e aprendi, que até os mais jovens nos ensinam a distribuir sonhos”.
             O momento passou como um sopro de paz e gratidão para Abel, ele acariciou o rosto de bronze e ajeitou uma pequena rosa amarela sobre o ombro de bronze. Partiu e colocou na correspondência uma foto, endereçada para antiga escola, com a simples frase. “A grande alma flutuante, pairou por anos aqui e deixou que as luzes ficassem foscas”. Sorriu e caminhou sem rumo naquela tarde.

 - Mauro Alves e participação de Marcos Leite



 
 
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