Na noite de perspectivas ébrias de me tornar um grande homem, assegurando
a mim um opaco sabor de rum, não que fossemos piratas, todavia, a bebida de
Pinheiros, como favorita era o envelhecido rum dos tonéis da adega dos mortos.
Tal nome, uma incongruência na recepção informal do proprietário, que vivia
mais de seus aluguéis, do que a venda de bebidas, nas quais era um lugar totalmente
falido e cheirava a mofo.
Onde a carquilha de teus olhos passavam sombreando a imensidão deste
lugar, o som breve dos clarinetes do rádio e o amontoado de homens possuídos pela
doçura gris de um roliço charuto, as dependências das quais nos encontrávamos,
eram um frêmito de perdição a nossos intelectos, quais julgamos termos afetados
pela falta de clemência de nosso corpo a ingerirmos doses excessivas do líquido
carmim, quando observado entre a cortina de fumaça e o surrealismo arbitrário de
uma mente insana.
Admirando o que pudesse ser observado, vi aos olhos de Jonas, a luz
reluzente de um jovem apaixonado, pelos trejeitos angelicais de uma dama, da
qual ele jamais a cortejaria devido suas condições como cavalheiro e
propriedades, da quais jamais teve. Embora estivéssemos enfurnados no sub-solo
de uma espelunca onde nossos corações sentiam dor ao deixa-la, pude compreender
a magnitude de seu olhar fixo a mesa e o semblante imóvel, confessando assim,
seus desejos e frustrações quando a jovem donzela. Bastava um ato inusitado, para que o sorvo
longo o fizesse engasgar-se, mas não o faria, tal conduta o feriria quanto a
nossa proximidade e compreensão.
- Jonas, asseguro-te, és tarde!
- A que queres dizer Miguel?
- A ti!
- Não sabes ainda o que tenho em meu peito, se soubesse jamais
trataria de conceber uma pergunta sobre todo o escárnio descomedido de suas
ventas e sobrancelhas.
- Asseguro-te amigo, és bela, mas habita outro mundo.
- Se tivesse dinheiro...
- De nada adiantaria, és belo, todavia, tens o segredo que jamais
poderia revelar.
- Maldito, maldito, imundo.
- Não te aborreças.
- Se puderes acompanhar-me, a noite está desanuviando o corpo negro e
a lua impõe sua magnitude, mas a vejo fantasmagórica hoje. – prossegui.
- Seja menos poético, não passamos de homens inebriados nessa fria e amaldiçoada
noite.
A quietude das vias não se assemelhavam apenas a um cemitério noturno,
onde as almas giram em torno da capela, amontoadas de desejos e grunhidos. A imensidão
de espaço baldio nos trazia um sopro de existência, garantindo-nos a dúvida
da vida e a morte, perscrutando os breves e mínimos resquícios de ruídos, uma
noite insípida até mesmo para minhas narinas, sem orvalho, sem odores, apenas
um vento opressor, cujas as rajadas vistas ao longe nunca colidiam a nosso
semblante.
Jonas, um alto e elegante rapaz, com rosto pálido e olhar fosco,
caminhava com a destreza sobre as destoadas formas onde os paralelepípedos mal
se encaixavam, um mestre ao possuir tal postura e garbo ao driblar tais meros
atritos com os pés. Era descrente de qualquer hipótese noturna de ser
amedrontado, seja por um cavalo estirado ou um grito vil de horror. Tinha tais
pensamentos focados a formosura de uma moça, que fora repreendida de teus
desejos após um ato insensato e inconsciente de ternura e ódio descomedidos.
Matara o irmão de Jacqueline, com golpes de uma adaga familiar,
garantindo a polícia um álibi pouco provável mas aceito, que tal tarefa tenha
sido heroica ao salvar Denis da mãos de dois meliantes que o seguiram e o
esfaquearam até que suas vísceras começassem a jorrar de teu abdômen.
Consentido pelos civis, a farsa nunca foi aceita pela população, o martirizando
e negando trabalho e suas filhas para o seu sentir íntimo e pessoal, o amor.
Esteve só por anos, e ainda continua com tributos recebidos a custas de
inquilinos e o acentuado costume de ir ao bordel.
Eu de minhas improváveis amizades e história, aceito como louco,
escrevia no jornal textos filosóficos, que obviamente não era a parte mais
apreciada do folhetim, se estivesse usando de minha linguagem para encenar a
trama fajuta de tal sociedade, trataria de comprometer os homens de respeito e
suas mulheres numa valsa de desejos e orgias nefastas sobre o solo da santo e
puro em que habitávamos.
- Miguel! Acreditas que sou o culpado da morte de Denis?
- Caro, não trataria de assumir uma opinião quanto a suma competência de
afastar-te de mim ou deixar-te colérico.
- Então, acreditas.
- Foi você?
- Céus, não o matei.
- És o único possível, assassino, os meliantes nunca existiram.
- Sim, existiram.
- Um agourado homem.
- Sim, talvez eu seja, entre os dois anjos, do vale das mortiças, há
uma caverna enlodada e escorregadiça, após o acontecido, eu caminhei numa noite
após sair do La Femelle[1] e
encontrei dois lenços, um era de Denis e outro tinha apenas a letra V.
- És maluco!
- Se não crês, deveria acompanhar-me. – relutou Jonas.
Dentro das perspectivas mais comuns de um homem, o corromperia de seu
breve intuito da mentira a tornar um real e culpado homem que aceitasse o erro
e garantisse uma menor pena no inferno.
Prosseguimos pela rua onde se encontrava o vale, e lá o que mais
amedrontava era o aspecto nu dos anjos e suas iniquidades e vergonhas sendo
exploradas por nossos olhos e de todo o ser pestilento que ali passasse ou
habitasse, havia ainda dizeres que a terra ali era feita para atribuir feitiços
e magias.
- Vês Miguel agora!?
- Sim, vejo e percebo ainda que o matou.
- Claro que o matei, imundo, e maldito, perece até hoje na terra, não sabes
o quanto sou grato por ter o esfaqueado tantas vezes e a boca e seu abdômen sagrarem
com tanta palpitação, sinto como se tivesse o feito hoje e ainda sou grato a
mim mesmo por tê-lo executado.
- O que importa a mim?
- Nada, apenas o queria aqui.
- Acerca...
- Acerca de mostrar minha real identidade. – interpelou Jonas.
- Não é necessário, já o sabia, mesmo que não tivesse envolto no caso,
claramente percebi sua injúria contra Denis ao lhe prostrar em praça pública, o
humilhando e esvaecendo sua boa intenção com Jacqueline.
- Teve o que merecia, e isso não é o simples fato, apenas o matar me
fez querer viver.
- Se pensas assim, tratemos de voltar.
- Voltar? – zombou Jonas.
- Ainda não percebera Miguel.
- Não, ainda não o compreendi, mas tenha certeza que sou mais sagaz
que Denis.
- Não o mataria amigo, mas o levaria comigo.
Ao som entonado de tua última palavra, compreendi, onde estava e
defronte a tal imundo e medonho espírito eu estivera, Jonas Pinheiros, fora
assassinado pela família de Denis três semanas após o caso Ferraz ter saído na mídia
da cidade, fora decapitado após sacarem os olhos e queimarem o corpo, a polícia
deixou o inquérito engavetado, fazendo assim o gosto da família endinheirada do
barão, o comentário em questão na ocasião, fora que o demônio tenha vindo
busca-lo após suas transgressões em terra, obviamente que culpado, todavia, sem
tal malevolência determinada pela população.
A mim, o que resta é entrar na canoa de Caronte e pagar-lhe o óbolo, já
que Jonas meu austero amigo, tenha me buscado do mais enfadonho lugar e trazido
a outro pior, assim como em vida, pagar o que fiz em toda minha existência em
terra, após a cólera e o enforcamento de Jacqueline, aquela ocasião foi
tremendamente prazerosa, ainda não posso contar a Jonas, aposto que ele não soube,
intimamente talvez ele o entenda, e meu amor por tal amizade, ele acate como
boa atitude, e quem saiba zombe também ao ouvir que tratei de afogar o barão com pedras
amarradas em seus pés e braços. Se não fosse tamanha estapafúrdia, ele ter ido
ao lago, ébrio e com muitas verdades a proclamar aos ventos, eu não o
encontraria, ao sair do La Femelle, o
acertei abruptamente na cabeça com um pedaço de madeira, e o amarrei sem deixar
pistas, usei luvas de couro e o empurrei até que o lago pudesse o consumir.
Velho embusteiro, mereceu ter tal fim.
E que então peguei a mão do espírito no vale das mortiças e encontrei a paz, e o desespero que talvez me espera, mas sei que o efêmero prazer dos assassínios
cometidos por mim, tenham se evaporado com a presença inconstante do horror que
conheceria após adentrar a caverna, de mãos dadas a meu amigo assombrado.
- Marcos Leite