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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A carne humana

         De olhos azuis feitos dois spotligths brilhantes, a pequena Camila olhou através da janela no segundo andar de uma residência colonial, e viu um sujeito alto com um sobretudo escuro de gola alta, estagnado frente ao portão de sua casa.
          O homem tocava a campainha insistentemente.
          — Mamãe, quem é aquele homem lá embaixo? — a criança nunca havia visto aquela figura altiva na vida; pelo menos não naquela distância. No entanto, assim que ele subisse os duplos pares de escadas e ficasse de frente a ela, de fato ela perceberia que nunca o tinha presenciado realmente.
          Um minuto antes disso, sua mãe, Dolores Espínola (que se dizia ser a reencarnação de Ilse Koch) estava no linear da cozinha com um cutelo na mão preparando o repasto, quando, logo no terceiro toque da campainha, ela pegou uma toalha de mesa para expurgar-lhe a pele das mãos gordurosas de carne que estava desfiando, e desceu os degraus em direção ao estranho.
          Camila achou aquele ato invulgar.
          Os dois adultos subiram juntos, e o homem, de aparência fria e estoica, inelutável, com fragrância de água de colônia no corpo, meneou o dedo indicador em direção à boca como a dizer para Camila deter-se em silêncio. A menina, de cabelos fulvos contrastando com seu baby-doll de ceda, já tremia de medo. A partir de então, impiedosamente, o convidado cutucou levemente as nádegas de sua mãe antes de levá-la para um quartinho nos fundos do aposento. Porém, antes de ir, Dolores se abaixou em direção a filha, pôs as mãos nos ombros dela e disse:
          — Você sempre me pediu um celular de presente, um aparelho com Wi-Fi e câmera digital. Pois hoje é o seu dia de sorte. Mamãe vai providenciar isso pra você, mas você vai precisar ficar sozinha aqui por algum tempo. Tem conservas no armário e congelados na geladeira, coloque no micro-ondas e divirta-se.
          — Mas mamãe...
          — Cala-te, estúpida — Dolores exprimiu para a filha em um tom monótono, como se tivesse perguntando o preço dos legumes para um comerciante qualquer. Sua paciência era pouca, principalmente quando seu parceiro logo atrás de si já lhe começava a esfregar vertiginosamente o membro em suas partes íntimas. — Faça o que mandei e tudo ficará bem.
          — Eu confio em você, mamãe.
          — Não interessa em quem confie. Só fique aqui.
          — Tudo bem mamãe.
          — Maldito dia que fui ter-te — após lançar tal afirmação sob o ar oneroso, Dolores e o sujeito sem nome desapareceram da sala deixando a menina largada só... terrificada...
          Na televisão ligada, um apresentador âncora de um telejornal qualquer fazia perorações sobre o desaparecimento de mais de vinte pessoas nos arredores de Virgínia, região sul do estado de Minas Gerais — local de onde eles viviam. Algum assassino perambulava por aquelas bandas e, mesmo sua mãe estando com um sujeito estranho no quarto ao lado, Camila se sentia tão sozinha e indefesa que começara a prantear-se em fortes lágrimas... Isso não era nada bom, pois se Dolores ouvisse seus lamentos, faria com a filha o que já fizera antes: forçá-la-ia a comer ovos de pombos escaldados no jantar.
          Sua matriarca sabia ser bem suja quando queria.
          — Camilaaaa — Dolores chamou pela filha mais rápido do que a própria filha esperava, saindo velozmente do quartinho e surgindo na frente da criança com o corpo completamente nu... exceto por um avental que tapava as suas partes íntimas. O avental era branco mas se encontrava todo manchado de um sangue que parecia ser sangue humano...
          — O que aconteceu mamãe?
          — O coito fora mais rápido do que eu previra, Camilaaaa. Agora quero que me faça um favor. Leve esta bolsa de estopa lá para baixo e o jogue no alto da ribanceira.
          Desse modo, a mãe colocou forçosamente uma pesada bolsa de estopa marrom clara nas mãos da filha, com restos de alguma coisa fétida inserida lá dentro.
          — A senhora fez aquilo de novo, não fez?
          — Não é da sua conta! Faça o que eu te mandei fazer, doutra forma ficarás sem jantar hoje a noite, entendeu?
          — Entendi mamãe.
          E então a pobre criança assim o fez, como sempre fazia...




     
    -Igor Montenegro-

          O cintilado e úmido ar da alvorada, junto ao gélido sopro do vento baldio que beijava a região, trouxera Igor Montenegro a vida — homem marcado com as iniquidades de suas remanescentes gerações passadas. Permaneceu na vida de forma dura, sem carinhos ou doçuras. Jamais tivera alguém. Órfão aos 21, obtivera os louros de seu nome, exibindo como mestre de jogos de cartas, mulheres e o esmero de um mercenário, entre todos os demais mercenários de sua idade.
          Viveste com maior garbo e elegância do que pudesse crer, um lord, com uma mansão e muitos segredos contidos, se sabe que hoje tens 60 anos, és um galanteador maduro, de muitas trapaças e crimes.
          Conhecera Dolores Espínola em uma festa interiorana. Jamais vira mulher com tanta doçura, formosura, o colo arfava sobre o decote talhado a mão, uma bela mulher, com uma filha e outros todos casos de repudiável desejo.
          Se encontravam acerca de quatro vezes por semana, o sexo o principal motivo, no entanto a grande característica mórbida de ambos eram o funesto desejo de sentir um breve cheiro de sangue ou carne, o que os corrompiam a copularem em cemitérios, matadouros e as vezes apos sacrificarem um animal menor.
          As sombras que os seguiam traçava uma lógica de expectativas vãs de se tornarem puro desejo sem inibirem o fato da alma estar maculada. Obviamente não criaram quaisquer traços de ternura, raramente tratariam de se preocupar, controlando assim um culto as suas prevaricações e insanidade carnal.
          Apos o desfecho, Dolores o matara. O assassínio ocorreu no dia do aniversario de Ilse Koch... um ritual, a premeditação obcecada a fazer jus a sua perspectiva fiel de ser a sucessora carnal da comandante nazista. Um mórbido crime, com olhos arrancados e uma singular ação: arrancar-lhe o pulmão esquerdo, enfurnando a glote. Jamais trataria de um suicídio, mesmo que as hipóteses mais absurdas tivessem germinado.
          Julgo assim um horror comum, se não obtivéssemos traços alvos e claros sobre a cama de Dolores, observando se assemelhavam a mãos e um lábio grosso, uma valsa de espectros, dois, talvez no purgatório tivesse encontrado Ilse Koch.


-Camila Espínola-

          Contrariando ao pedido da mãe, Camila optou por fazer parte daquela trama. Abriu a bolsa de estopa e copulou com aquele corpo gélido, de membro flácido. Os olhos arrancados de Igor não a assustara, acentuando ainda mais o seu desejo vil de perder a virgindade com ele. Camila o beijou e sentiu que a trapaça na qual o defunto participara, a contorcia em ousar.
          Apos a penetração, imóvel do corpo, ensanguentado e gélido, ouve um uivo, um frenesi sexual. Ela perdera sua inocência e atribuiu aos dias uma chaga, da qual conheceria em breves momentos.
          Qual o sol dobrou-se, a morte perscrutou o ambiente, os lábios arroxeados de Igor estavam em baixo da terra, e a quantidade de tempo após cavarem, mostrou o frescor da noite nas costas de Dolores e Camila, ambas com a inocência e pureza deflorada, embora as datas fossem diametrais.
          — Será que alguém nos viu, mamãe?
          — Ninguém perceberas!
          — Eu não tenho mais medo — assertou Camila.
          — É melhor que não, pois não te criei para ser uma menininha mimada — Dolores deu de ombro, esperando o momento certo para poder pegar a herança, pois sentir-se culpada era a última coisa de que ela queria pensar.


-Dança de espectros-

          Após o sacrifício e ruína de uma vida, as semanas se passaram e obtiveram cada vez mais cadência de que nada as tiveram denunciado. Claramente era um tipico assassinato para tal frondosa mulher e seus mistérios. A noite era negra como a terra podre, e o sulfúrico ar soprava com intensidade o odor funesto dos arredores da qual outros homens tinham sido assassinados e enterrados como uma valsa de espectros, sob a casa.
          — Posso deitar com você, mamãe?!
          — Sim, não vejo problema, porém filha, não quero que venha mais de uma vez por mês.
          — Sim senhora.




          Olhos fechados e corpos esguios e belos pousavam suaves entre o cetim e o algodão. Uma rotina de respiração perambulava pelo cômodo, atinando assim a intensidade de fervor — com vários e inúmeros espíritos adentrando as dependências e as inexatidões de seus pensamentos e sonhos.
          Um forte tintilar de um sino e dois grunhidos ecoaram abafadiços pelas janelas de guilhotina, nem sequer um corvo pudera ouvir, que dirá um ser vivente e humano?! A trama dos mortos encarregaram de levar Dolores e Camila para os umbrais do inferno, os corpos intactos na cama como divas inspiradoras, cortejavam o desejo expurgado de todos os rapazes que tiveram seus momentos de êxtase e volúpia sobre tais corpos rubenescos.
          Diante aos portões negros e duros, adquiram então um período de nostalgia, mesmo que quisessem, jamais poderiam arrepender-se. Um trato com o demônio fora cumprido através de todas as atitudes malignas e esquadrinhadas de Dolores, e a sucessão acéfala de Camila a acompanhar, mesmo que não tivesse ciência de todo o mal continuado em que atuava.
          Seu libido, com tanta ganância e imensidão, as colocaram defronte ao sofrimento eterno.


- Marcos Leite e Mauro Alves




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