Quando tinha doze anos, Abelardo
Bauer (ou simplesmente Abel, como seus colegas da oitava série do "Centro
Educacional Pereira Cardoso" costumavam o chamar) escreveu um pequeno
conto de ficção científica e o entregou nas mãos de sua professora de
literatura, chamada Lídia Rockembach. Foi um gesto simples e rápido. Quando ela
viu, já estava recebendo o manuscrito das mãos do menino. Ao recebê-lo, Lídia,
com três décadas de experiência pedagógica, o enfiara dentro de sua pasta
Satchel esperando que fosse mais um amontoado de palavras sem sentido que a
maioria de seus alunos a entregavam. A verdade era que ela já estava em pó de
rabiola por causa disso.
Lídia era uma gorda pançuda de
cinquenta e dois anos que levava a escrita muito a sério. A mulher era uma
ratazana de biblioteca! Ela odiava as obras tramadas em poucos minutos em mãos
inábeis, não perdoando nem mesmo os guris. Tudo que é bom, pensava ela, só era
bom porque fora feito com muita calma, prazer e esforço. Não existia talento
sem empenho. Também não existiam contos escritos desleixadamente que fossem
relativamente bons... O tempo o transformava, o tempo o florescia, e produzir
de qualquer jeito, com o ingênuo objetivo de querer saber a opinião alheia
acerca daquilo que escrevera, era uma forma errônea de ganhar popularidade. Os
leitores bem que mereciam um respeito maior neste quesito.
Para ela, o bom escritor é aquele
que escreve para agradar a si mesmo.
- Está certo - Lídia disse. Ela
permanecia sentada atrás de sua grande mesa de fórmica, em frente ao quadro
negro, mesmo depois de todos os alunos já terem se retirado da sala, exceto
Abel. - Prometo dar uma olhada quando chegar em casa. O que não prometo é que
eu vou gostar.
- Obrigado professora.
- Tudo bem - Lídia levantou-se
finalmente. - Agora realmente precisamos ir embora Abel, senão é bem capaz do
zelador nos prender aqui por engano. O homem quanto mais velho fica, mais
lesado se torna. Você concorda comigo?
- Concordo sim, pode crer!
Então Lídia abriu um largo sorriso e
espalhou o vasto cabelo cor de palha do moleque para o lado, que, embaraçado,
sorriu também. Desligaram-se as luzes, deixando as paredes azuis turquesa sombrias.
Ambos saíram da classe, depois da escola, tomando caminhos opostos naquele fim
de tarde que prometia uma sonora tempestade.
Só que Lídia não sabia da missa nem
a metade: aquele menino que estava ao lado dela, que dificilmente andava ao lado
de um amigo ou de mãos dadas com uma namorada, que falava muito pouco e não
saía tanto de casa, era quase um gênio...
***
Ela não descobriu isso de um dia
para o outro. Demorou mais de duas semanas para que Lídia se lembrasse do
amontoado de papéis (todos quase amarfanhados feito uma bola de tênis) jogados
no interior de sua pasta de Satchel. Mesmo assim, Abel nunca chegara perto dela
para lembrá-la da promessa que ela fizera para ele "O nosso maior crítico
é a nossa mente", a sua mãe, vencedora de vários prêmios literários como
cronista, sempre lhe dizia isso, "Então meu filho, confie em seu próprio
ego e bola pra frente".
No entanto, não foi por falta de
vontade que Lídia deixou a estória de Abel de lado. Dar aulas, corrigir provas
e jogar boliche ou bingo clandestino nos finais de semana com os amigos eram as
suas principais prioridades. Poder-se-ia dizer que eram as suas ÚNICAS
prioridades, de modo que sua filha, já crescida, sempre viajava para fora do
país como comissária da Tam; e o marido, Gustavo Farias de Rockembach, que
morrera em um acidente de carro na Avenida Brasil, já descansava há mais de
dois anos debaixo da terra no Cemitério Municipal da cidade.
- Isso daqui é uma joia rara! - foi
o que Lídia disse ao ler o manuscrito de onze páginas.
Ela lera em casa na companhia de um
copo de sidra laranja. O último conto que lhe havia deixado tão deslumbrada
daquele jeito, fora um escrito por H.P. Lovecraft chamado "Entre as
Paredes de Eryx". Apesar de antigo, o conto de Lovecraft era moderníssimo
para a época, cuja trama se passava no planeta Vênus onde o personagem central
viajava até lá a procura de cristais de energia, mas acabava sendo preso em uma
espécie de labirinto invisível no meio de um pântano desértico, porém, cheio de
homens-lagartos do lado de fora querendo pegá-lo, mas sem sucesso, pois havia a
impercebível parede entre eles. É lógico que Eryx era superior a de Abel...
mas, um garoto de 12 anos escrever algo como ela acabara de ler, era realmente
de se espantar... Ele não enchia linguiça desnecessariamente. Ele ia direto ao
ponto. Até então, muitos trabalhos literários passavam pela retina de Lídia
Rockembach, cuja maioria deles eram bem ruins. Aquele ali em suas mãos era
divino.
O conto de Abelardo se chamava O
Homem-Lagarto.
Era uma espécie de registro feito
sobre um dos seres mutantes extraído da estória de Lovecraft (como a vida de um
Hobbit extraído da saga do Senhor dos Anéis, por exemplo). Obviamente, o conto
continha alguns erros ortográficos e falhas de concordância – normal e
justificante aceitável para uma criança daquela idade. Além disso, a caligrafia
dele era terrível. Contudo, o enredo e a trama, assim como a vasta imaginação
que fluía na mente de Abel, era algo surreal.
Lídia estava ansiosa para conversar
a sós com ele.
Logo teve essa oportunidade.
Aconteceu na hora da saída, quando
todos os alunos se dispersavam pelo extrínseco portão do colégio. Lídia, que
não tinha ido trabalhar naquela sexta-feira, parou o seu Ford Windstar azul na
porta de entrada, esperando-o, secando-o.
- Olá Abel - ela o viu passar com a
correia da mochila trançada no ombro direito. - Quer uma carona? Entra aqui,
vamos.
Abel ajeitou seus óculos de grau
quadrado no rosto, remendado com grossas fitas adesivas.
- Professora Rochembach?
- Não, o meu nome é Cleópatra e
estou pronta para me suicidar. Venha até aqui Sr. Love brasileiro! O que eu
tenho para te contar é algo importante, acho que você vai gostar.
Abel entrou no carro mesmo achando
que a sua professora estivesse mais louca do que uma enfermeira de asilo.
- Pensei que a senhora não...
- Eu realmente não vim trabalhar
hoje, se é o que você pensou. Só não me contive em esperar até segunda para te
ver. Quer biscoito? Tem uma embalagem de Oreo e uma garrafa de Gatorade no porta-luvas.
Ainda está gelada. Pode pegar.
- Acabei de lanchar, mas aceito o
Gatorade.
- Não seja tímido - Lídia disse,
fechando as janelas do carro para que pudesse ligar o ar condicionado,
acionando a trava elétrica. O clima lá fora era de mais de 35° graus com
tendências de estender-se nos próximos dias.
Antes de deixá-lo em casa (ela
ainda não sabia onde ele morava, pois começava a se interessar pela vida dele
justamente agora) Lídia o levara até a perimetral que dava vista para a Praia
do Forno, em Arraial do Cabo, parando seu Ford em uma das vagas de concreto que
custava R$20 a hora. Um disparate!
Mesmo assim, ela pagaria ao homem
sem muito pleitear.
Mais além, através de uma cerca de
madeira com o desenho de um enorme Tucano de bico amarelado separando o
calçadão da areia da praia, um ou outro surfista tentava pegar onda no mar lá
ao longe.
- O que a senhora tem para me
contar? - Abel estava louco para ir embora, abrir o Word e escrever novas
estórias. A maioria dos garotos de sua idade ficavam mais preocupados em chegar
em casa e assistir a MTV ou a MULTISHOW.
- Eu li o que você escreveu - Lídia
revelou, fleumática.
- A senhora gostou?
- Não - foi uma resposta tão rápida
que acabara saindo antes mesmo do final da pergunta.
- Se não gostou então devo pedir
desculpas por fazê-la perder todo o seu tempo! Eu nem mesmo sei por que a
senhora me trouxe até esse lugar, já que não...
- Meu filho, gostar não é a palavra
ideal para descrever o que senti ao ler o seu conto. Acho... acho que fiquei
deslumbrada.
- Tá falando sério?
- Não é Tá. É Está. E sim, estou
falando muiiiito sério. Tem a minha palavra de honra!
- Embora eu tenha me superestimado.
Conclui assim mesmo, e lhe entreguei, este é o manuscrito. Pode me devolver?
- Sim! É o inicio de uma obra, pode
ser que com a maturidade você o desenvolva mais. Por que nunca disseste antes
que escrevia?
- Ás vezes ficamos quietos com medo
de falar bobagem.
- O que disse agora é uma grande
bobagem, o medo inibe as pessoas pelo mundo todo Abel. O que pretende ser após
o colégio?
- Não serei um escritor. – Disse
categoricamente.
Com expressão de raiva e
deliberadamente inconformada Lídia subiu as sobrancelhas e disse:
- Quando eu tinha sua idade, eu
disse o mesmo para meu professor, mas não era um professor normal, era meu pai,
ele sonhava que eu pudesse compartilhar com o resto do mundo meus pensamentos e
meus contos. Um dia no sul de Minas Gerais, fui até a biblioteca pública, e
adentrei com meu pai por severa curiosidade, lá tinha um grande piano,
prateleiras com milhares de livros, algumas esculturas em madeira de artistas
da cidade de Passa Quatro, e quando olhei nas paredes, tinha fotos de pessoas e
coisas.
- Mas onde quer chegar - Interpelou
Abel ansioso.
- Estive neste lugar, foi quando
meu professor, meu pai, fez o mesmo questionamento. Eu frequentei a escola
normalmente, mas meu pai era meu professor de vida querido, me mostrou que nem
sempre estar no pódio faz de você o melhor. Ele coexistiu em minha vida de
forma tão arbitrária que pude ter um certo êxtase de remorso quando ele se foi.
- Por que não escreveu um livro?
- Escrevi, escrevi muitos, mas os
queimei depois que ele se foi.
- E qual a relação da biblioteca, livros e
seu pai?
- A relação é simples. Você percebe
a cada momento que passa que sua parcela de existência aqui é mínima, e eu
deixei de aproveitar o prazer de participar quem sabe um dia das paredes daquele
belo lugar com meu rosto, com minhas obras no salão e com a estupenda memória
de meu pai. Eu seria uma grande escritora na minha cidade, mesmo que somente
para ele.
- Embora, eu a respeite e a memória
de teu pai, não posso fazê-lo somente por uma frustração da senhora. Espero que
não entenda mal, não estou sendo grosseiro.
- Não, não está. – Disse olhando
para o horizonte, seus olhos tinham um brilho vago e pensou novamente no conto
de Abel.
- E o que quer ser? – Questionou
Lídia.
- Um entusiasta.
- Mas disse que não seria escritor.
- E não serei, serei um entusiasta.
Quero observar as coisas, pessoas e condutas que o mundo segue, ou quem sabe
caminhos, seja lá como for que é o certo dizer.
- Caminhos. – Disse Lídia
rapidamente.
- Não é? O mundo de escritores e as
pessoas adultas sempre estão aptas para corrigir a todos.
- Não foi uma repreensão.
- Não, não foi. Mas é por esse tipo
de pensamento que não quero ser um escritor, não quero ser perfeito, ser um
cara grandalhão que fala e não aceita que os demais discordem, ou mesmo que tem
a obrigação de ser perfeito consigo mesmo para que não se julgue quando receber
alguma critica de seu próprio trabalho.
Por um certo momento um silêncio
glacial pairou entre eles, e como um golpe vieram verdades aos dois. E se
questionaram fitando o horizonte por cerca de dez minutos, calados, e admirando
a cor azul belíssima do céu carioca.
- Lídia! Não temos um prazo para
fazer qualquer coisa que seja em nossas vidas. A velhice não é desculpa. Se
quiser ainda reatar parte de seu fabuloso passado, deveria publicar seus
livros.
- Eu os queimei. – A professora disse
com indiferença.
- Não, não os queimou, deve ter
alguma copia.
- Como pode duvidar de mim? Sou uma
professora velha e verdadeira.
- Eu digo sempre para os outros que
queimo minhas obras também, por ter vergonha delas, e quanto a isso acredito
que sejamos comparsas.
- Como sabes?
- Apesar de eu ser um menino, um
jovem entusiasta tende a ser abençoado com o dom da adivinhação. – Sorriu
gentilmente para a professora.
- Não serei uma escritora, e quem
sabe uma entusiasta também?!
- Não você não pode mais ser uma
entusiasta.
- E tem idade?
- Não, não tem, mas é uma
escritora, nesses dias após lhe entregar o Homem lagarto, eu pesquisei seu nome
na internet, e na página 10 ou 13, não me vem agora, tinha um pseudônimo e que
era similar ao seu nome, um anagrama de letras, e li no site, que era de
escritores alguns de seus contos. É tão famosa e lida. Que jamais seria uma
mera entusiasta, é uma escritora.
Por certo momento Lídia, olhou para
sua esquerda desprezando a presença do rapaz e seus olhos em lágrimas disse
serenamente:
- Até hoje ninguém da escola havia
buscado referências minhas, quiçá descobrir que sou uma escritora por trás de
um pseudônimo. Minha presença austera inibe as pessoas, e sempre fui taxada
como a professora chata.
- Estou feliz que tenha se aberto.
- Obrigado! – Agradeceu Lídia.
- Pelo que? – Abel disse curioso.
- Por mostrar que a vida não é
apenas as linhas que o mundo ou as pessoas traçam, estamos além disto. Eu tenho
a agradecer a você por me relembrar disso.
Abel assentiu com a cabeça. E o
carro tomou rumo pela via, após deixar o rapaz próximo de sua casa, ela foi
para sua descansar.
Cerca de dez anos se passaram
depois daquele encontro, o sol estava escaldante e o céu era azul como o do
encontro, mas infelizmente era uma data não muito feliz. Lídia falecera pela
manhã. Abel já mais velho resolveu deixar uma singeleza homenagem na sepultura
da ex-professora dias depois.
Ajoelhou próximo a lápide, cujo
estava a bela foto de Lídia quando jovem, e acho que o homem que estava
cortado, era seu pai. Ele levou flores, mas não flores comuns, eram poemas e
contos de Lídia dobrados em um ramalhete bege belíssimo. Ele os colocou
desnudos, com uma frase. “Foi professora, escritora, amiga e rara entusiasta
entre os homens”.
A professora sem saber, após aquela
tarde com o garoto, ela acendeu a chama dos sonhos, um pavio que estava molhado
a um certo tempo por repreensões ou dilemas que eles mesmos criaram, anos após,
tornou-se um escritor, do qual jamais disse que seria. E entendeu que os
entusiastas fazem algo por nós sem que lhe paguem ou de algo em troca, e em seu
peito entendeu o porque de Lídia ser uma fabulosa entusiasta.
No ano atual, ele viajou por cerca
de quinze estados para divulgação do seu romance Homem lagarto, e na penúltima
parada foi a cidade de Passa Quatro, a qual Lídia viveu e morou. Seu livro
seria apresentado na Biblioteca Municipal, e ao chegar notou que o rosto da
professora não estava entre os demais, gesticulou com certo pesar e continuou a
sorrir.
O frio era intermitente no sul de
Minas, chegou em julho e aproveitou para passear entre as singelas lojas e
belos parques de fontes naturais da cidadezinha. Entendeu o porque ali fazia tão
bem para sua amiga. Aproveitou também da culinária e passeou na Maria fumaça.
Esteve por alguns dias em paz. E de certa forma decepcionado pela indiferença
das pessoas e da prefeitura com sua escritora favorita.
Horas antes de partir, resolveu por
uma última vez, descansar e ouvir os pássaros cantar em uma praça belíssima
próxima a rádio da cidade, e sentou-se, com um livro e um copo de suco passou
por alguns momentos, sem esperar, olhou ao longe e viu que no fim da praça
tinha um rosto deveras familiar. Aproximou-se e era de Lídia, um belo busto em
bronze, jazia naquela praça. Ficou atônito e releu varias vezes a inscrição
embaixo do busto. “Sou uma entusiasta, os escritores são apenas pessoas que
entregam palavras, eu vivi e aprendi, que até os mais jovens nos ensinam a
distribuir sonhos”.
O momento passou como um sopro de
paz e gratidão para Abel, ele acariciou o rosto de bronze e ajeitou uma pequena
rosa amarela sobre o ombro de bronze. Partiu e colocou na correspondência uma foto,
endereçada para antiga escola, com a simples frase. “A grande alma flutuante,
pairou por anos aqui e deixou que as luzes ficassem foscas”. Sorriu e caminhou
sem rumo naquela tarde.
- Mauro Alves e participação de Marcos Leite