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domingo, 13 de setembro de 2015

O fanal azulado



            Desolada pelas pragas, as ruínas baldias anátemas da luz, vagavam pelas planícies da Índia, homens, crianças, mulheres e doentes. Sentenciados pelos demônios, a mixórdia era presente aos olhos que despontavam em lágrimas. Ao norte e ao sul, dos mercados infestados pela fome, sede, feitiços e simpatias.  A desonra e a impunidade perpetuam relevando as guerras.  Sem descanso caminhavam na penúria da terra devastada, a imensidão de corpos e armas, prostravam o sinistro e a dúvida dos poderes divinos. 
            Numa noite de lua minguante nascera Andrômeda, o estranho bebê de traços distantes aos que habitavam as cidades enfeitiçadas, olhos puxados, pele alva, cabelos negros e lisos, de semblante misterioso com olhos azuis como safiras extraídas dos pulmões azuis das sereias do Índico. Emoldurada em um cesto próxima aos lambris depredados, a pequena fitava a quietude como faróis intensos. Solitária e protegida, crescera numa pequeno monte distante dos centros urbanos. A jovem Andrômeda filha da luz, negligenciada pelos homens e céus, predizia profecias as águas do mar, distante como uma torre, seus olhos serviam como estrelas para os marinheiros e exploradores. 
            Nenúfar da perfeição, assemelhava as flores raríssimas, orgulhosa de sua beleza, invejara os deuses. Em uma emboscada, num cone espacial mandaram raios e trovões ao monte que habitava, os demônios a carregaram para o vilarejo das castas imundas que visitavam os jazigos, ocupavam em limpar os esgotos, tornando-a em uma deles. Andrômeda habitou-se a viver entre a podridão, a dar banhos em cadáveres antes dos rituais funerários, vagava pelos cemitérios a serviço e lealdade a sua casta. Esquecera sua beleza e divindade, trocava as meditações pelas latrinas fétidas. Sua perfeição que reinava no céu como estrelas nós céu de Indra fora execrada. 
            Quando a noite tornou-se infinda, a menina decidiu caminhar entre os cemitérios em busca de qualquer peça valiosa, a sede e a fome eram grandes como a força das ondas influenciadas pela lua. Adentrou um mausoléu, sobre oito cabeças de cabelos alvos eriçados e olhos enegrecidos flutuavam duas esferas brilhantes, uma dourada a direita sobre as quatro que sorriam, e uma vermelha sobre as outras que choravam. Corajosa, caminhou até o limiar das duas esferas, seus olhos belíssimos miravam sua eferverscência, quando aproximou rente as duas chamas de cores distintas, fez que as duas liquefizessem em uma grande esfera azulada como os olhos da espectadora. O barulho das ossadas e os pés ágeis da deusa escondida na escuridão chamou a atenção da jovem voltando dois passos olhando para trás, ao volver a cabecinha deslumbrou sua visão com as esferas novamente em posição inicial.
            Kali a deusa da morte, A Negra, que vaga pelos lugares mais sórdidos, nos quarteirões mal afamados em busca do prazer, a entregar seu corpo venerado pela luxúria dos homens. É perversa e divina. Perpetua pelas ruas e cemitérios, mastigando esqueletos, e seduzindo pretendentes. A Terrível em vingança a cólera dos deuses, protegera Andrômeda em seus feitios perfeitos. Preocupada para que os outros não a descobrissem, levou a jovem até o monte para que nascesse livre da ira de outrem, fora descoberta anos depois e levada para cidade, mas Kali nunca deixou de vigiá-la por onde quer que andasse, vezes dura, vezes dócil. Abjeta, conhecia as malícias e o mundanismo como a palma de uma de suas mãos. Sagaz, a deusa soprou no coração da jovem o desejo por comida e a trouxe a seu encontro.
            Quando aproximou novamente das esferas, transformaram-se em apenas uma azulada, em seu interior a deusa aparecera com olhos marejados em lágrimas, perversos e leais, com sua língua para fora e o esplendor em torno de sua cabeça. Kali encarava Andrômeda como se fossem mãe e filha. A jovem hipnotizada pela beleza da deusa aproximou, seus olhos de safiras brilharam em resposta a luz da deusa, os raios cruzaram-se formando três elementos que flutuavam, a direita  emergia um diadema de ouro faiscante, no meio uma lâmpada arroxeada delicada como a cerâmica e tenaz como o diamante, a esquerda uma pena acinzentada de uma coruja real, os talismãs cintilavam entre os olhares profundos, mantiveram-se em silêncio, a comunicação oculta era deliberada pela espessura dos raios de luz, quando a jovem piscou, viu que eram sustentados somente pelo seus olhos, a esfera estava lisa e sem feição, estendera as mãozinhas e desceram até sua palma a lâmpada e a pena, o diadema adornou sobre sua tez. Laureada, Andrômeda instruída pela deusa, esfregou a pena no corpo da lâmpada, libertando um gênio arroxeado sábio e misterioso.
            O gênio diante sua dona a admirava, consternado em ver a enigmática criança de traços frágeis, a reverenciou. Sabido que era procurada pelas sombras, apressaram a caminhar para a encosta, sem qualquer iluminação as árvores negras assombravam o coração da menina, caminharam a madrugada toda, os pios e animais noturnos respeitavam a presença dos dois, galgaram em silêncio até o cume. Quando chegaram ao topo, estavam tranquilos, sem a real certeza, pois, as estrelas não apareciam, eram apenas trevas. 
            Após esconderem no interior de uma pequena caverna, correram próximo a mina de água, sedenta, chorou, e de seus olhos brilhantes caíram gotas azuis, na areia árida as duas gotas rolaram aumentando de tamanho, o jorro aquático despertou, as águas correram depressa até a cidade, o milagre a denunciava. Perscrutados pelos céus, correram para o mar, o gênio levou-a para o fundo dos infernos, e pediu que mantivesse os olhos fechados até que a avisasse. Os que recusaram a luz estavam nos calabouços de lama e fogo, fantasmas retorcidos pelo remorso e culpa, jaziam em sofrimento eterno. O gênio desceu até o pântano, caminhou com Andrômeda em teus braços, não poderiam ser revelados a não ser pelo olhar azul irretroativo. Ao chegarem onde as flores de lótus flutuavam a mando da deusa, o gênio colocou-a em uma pedra, e pediu que abrisse os olhos. As pálpebras abriram-se e as duas safiras ficaram frente a frente a Kali. 
            Os deuses enfurecidos pelas instruções da traidora, fizeram brotar sal da terra, as águas salobras desceram da encosta contaminando os lagos, rios e córregos. A ira também lançou sobre eles loucura, dos párias aos Brâmanes, a imundice reinava entre a desordem, o desejo de vingança contra aqueles que os desrespeitavam cingiu de sangue as ruas e ruínas. As plantações arruinadas pela seca, os animais debilitados sucumbiam em pestes, casas deprimentemente massacradas, o cenário medonho da inanição esfregava a cerne do castigo lançado pelos ventos opressores do espaço, varreram a cidade e a população, dizimara a esperança. As vielas estavam infestadas do cheiro da morte, pútridos, os homens clamavam justiça mesmo vituperando contra a todos sua miserável condição. 
            Flácidas e zangadas, as viúvas velhas que caminhavam na praia em luto a seus esposos dilacerados pelas maldições, praguejavam desejos vis de suas bocas ensanguentadas e fétidas, clamavam e rogavam a volta de seus parceiros, banhavam-se nas águas, nuas e feias, zombavam do sol, da lua e das divindades, gozavam de seu orgulho, mesmo sem motivos para existir. Os esconjuros das viúvas desceram para o fundo dos mares, e lhes trouxe chagas. Braços, pernas, abdomens e cabeças pardacentas tornaram-se leprosas, esfarelavam como o trigo na água. Suas palavras eram cobradas, as bocas e dentes apodreceram, tornaram-se corpos esqueléticos e famintos, cegas e imundas, não podiam gritar, nem blasfemar, algumas delas caminhavam até o desfiladeiro desmoronando como pedras a colidirem com as rochas. 
            A deusa que encarava Andrômeda, desviou a cabeça para direita e os raios azuis atravessaram os purgatórios e o mar, tornando doce as águas do mar próximas a areia. O segundo trabalho da jovem fora concluído, e denunciado seu lugar de estadia, então o gênio e a deusa carregaram a jovem para a superfície onde permanecia uma legião de demônios. Kali a deusa da morte, com sua espada os degolou e lambeu o sangue, o gênio ergueu sua protegida e flanaram sobre as criaturas sem cabeça prostradas na areia. Correram para cidade onde as ameças foram liquidadas pela forte espada que decapitava as cabeças fazendo-as rolar pela areia, de toda sua perfeição a deusa girava e os rasgava em seus pescoços pestilentos, o rosário de ossadas tintilava a melodia da guerra, seus braços ágeis a protegiam e sua face pavorosa a encorajava, após vencer a batalha demoníaca a deusa desaparecera.
            Assombraram ao notarem que as águas da praia agora estavam negras e viscosas. O gênio que sondava o centurião de estrelas apagadas, viu que raios brilhavam ligeiramente e distantes. Apreensivo, tomou a jovem, de olhos fechados, o diadema brilhava, de sua boca saia profecias, os que lá viviam admiravam as palavras da pequena, então Andrômeda soprou de seus pulmões azuis todo seu fôlego a mensagem que não pereceriam na miséria. Um trovão arrebatou a cidade, a fumaça arroxeada envolveu a jovem e correram para o monte. Desacreditados, após a anunciação da profecia, esperavam a resposta dos céus contrariando as palavras da jovem.
            Viram que no topo da encosta duas estrelas azuis brilhavam, e nenhuma outra na imensidão do espaço emitia luz. Restaram trevas e quietude. No cone espacial, preparavam uma emboscada para degolar a deusa, espreitaram convencidos do descanso e regojizo de Kali. Os pezinhos da protegida calcaram a areia inundada pelas águas salobras, vingaram de seus dedinhos bolhas esfuziantes, correram rio abaixo diluindo o sal, o trabalho incansável em restabelecer vida aos seus enfureceu ainda mais os que a açoitava. Silenciaram, por duas noites nada aconteceu, e em seu coração a paz não protagonizou. 
            Quando ainda menor premeditou a covardia, perto de uma poça d’água se viu infinitamente grande, como num espelho reconheceu-se apreensiva, os raios de sol não eram tão vivos quando seu reflexo azul, colocou a ponta de um de seus dedinhos e fez um redemoinho, formando uma galáxia brilhante e perfeita. Baixou as duas mãozinhas e sorveu a água em um gole engolindo as constelações. Após fartar-se viu um clarão como se o coração do sol despótico de vida explodisse a seu encontro, sozinha, amedrontou-se e pairou entre dois cavalos, um forte animal fulvo e outro branco com longa crina despojada.
            Andrômeda nunca estivera sozinha, fora trazida e cuidada pela deusa que agora honrava, Kali cuidou de seu nascimento até que completasse onze anos, sua predestinação se cumpriu quando fora levada pelos demônios, a deusa sabiamente aguardava o momento em que a resgataria e se vingaria dos outros. Acocorada em uma árvore sussurrou palavras que se elevaram até os ouvidos do gênio, ele acariciou a ponta dos cabelos negros da menina de escondeu-se sobre as brumas. Em tempo vingaria-se de todos. Ela revelava-se como uma sombra, mas não a atacaram, se errassem jamais a encontrariam novamente. 
            Com a paciência sagrada, atiçaram as serpentes, elas por sua vez tentavam enrolar-se nas pernas da que tinha a cabeça como uma torre de dois faróis impenetráveis, pisou sobre as víboras que desintegraram como pó, tentaram então assoprar fogo, mas os raios azuis impeliam as labaredas ardentes, por fim a deusa após reconhecer os ataques falhos, ansiava completar sua estratagema de justiça, por sua vez os deuses a enganaram, lançando seus poderes contra a jovem, não eram para destruí-la, apenas para atrair a deusa, então mandaram um gigante que asfixiasse a protegida, quando ele a ergueu e a apertou fortemente, seus olhinhos esvaeceram e antes de apagarem, a espada decapitou o gigante e a boca quente passou a língua sobre o sangue do titã.
            Ela por sua vez, terrível. Que fitava os raios azuis abraçou a menina. Em teu seio maculado e fétido a jovem descansou. Os deuses que as sondavam regojizavam da tolice de Kali e lançaram um grandioso raio afim de degolar a deusa por sua perfídia, o raio atingiu o diadema de Andrômeda, de olhos abertos, a pequena liquefez em um fanal azulado, elevando bilhares de estrelas em direção ao centurião, as estrelas azuis substituíram as enegrecidas fechando o cone espacial dos deuses, a fumaça estelar formaram duas grandes luas azuis, adornadas por incontáveis outras dando vida a um diadema celeste. Kali a terrível, impiedosa, orgulhava-se da pequena e zombava dos deuses, e em teu peito uma crosta de astros azuis cintilavam vivamente.

                                                           - Marcos Leite



 
 
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